domingo, 17 de junio de 2012

NOITE SACROSSANTA


Poucas vezes a palabra dramatismo foi tão bem empregada como naquele serão de 17 de junho de 1992. O palco, casa comum de todos nós, são-paulinos, o Estádio Cícero Pompeu de Toledo, o velho Estádio do Morumbi – naquele ano ainda não tão velho, só com 32 dois anos. Os envolvidos na história, o São Paulo e o Newell’s Old Boys. O nome da história, a tão desejada Taça Libertadores da América (nome já com pompa epopeica em si).
Pelo segunda vez na sua história, o São Paulo chegava a uma final de Libertadores. O mesmo, coincidentemente, ocorria com os argentinos do Newell’s. E tanto um como o outro haviam sido derrotados na primeira vez que chegaram à final. O São Paulo em 1974 para o super-campeão da Libertadores de então, o Independiente. E o Newell’s quatro anos antes, em 1988, para o Nacional de Montevideo.
Em 1992, a Libertadores já estava há quase uma década só ouvindo o grito de “campeón”. A última vez que um clube brasileiro vencera o principal torneio interclubes sul-americano havia sido em 1983, com o Grêmio.
Hoje se fala muito que os clubes brasileiros menosprezavam a competição. Visão com a qual não concordo. Julgo que, apenas, não eram tão obnubilados pela Libertadores como são hoje e que não a priorizavam como na atualidade em detrimento de outros campeonatos. A partir do fim dos anos 1980, entretanto, os clubes brasileiros começaram a enxergar a Libertadores com mais carinho na comparação com outros trofeus. Times mixtos ou reservas já passavam, ainda que não da maneira sistemática como hoje, a ser utilizados em partidas de outras competições que antecediam a uma partida da Libertadores, ao menos a partir das fases eliminatórias.
O São Paulo entrara na Libertadores de 1992 por ter sido campeão brasileiro em 1991. Esse havia sido um ano perfeito para o São Paulo, já que para além do Brasileiro, também conquistara o outro único campeonato que disputou, o Paulista. Entretanto, 1992 começara para o São Paulo com a marca da irregularidade, a despeito da diretoria ter mantido os principais jogadores do vitorioso ano transato. A equipa tricolor chegou a sofrer, inclusive, goleadas, como um 4-0 para o arquirrival Palmeiras no Brasileiro e um 3-0 contra o Criciuma na estreia da própria Libertadores. Porém, aos poucos, o conjunto comandado pelo saudoso Telê Santana fora das quatro linhas e por Raí, manifestamente, o melhor jogador brasileiro de então, dentro delas, foi acertando-se e ganhando corpo. Como a primeira fase do Brasileiro classificava quase a metade dos times para a segunda fase (oito de vinte), o São Paulo pôde concentrar-se de modo mais tranquilo na competição continental. Embora não fosse comum Têle colocar times reservas nos jogos do Brasileiro, era evidente que os jogadores soiam ter mais a cabeça voltada para os jogos da Libertadores. Após a acachapante derrota para o Criciúma na partida inicial, o São Paulo passou a estar mais atento a ela, terminando relativamente bem a primeira fase (ainda que na segunda posição) na qual compunha um grupo, para além do clube catarinense, com os bolivianos San José e Bolívar.
É a partir das oitavas-de-finais, contra o Nacional de Montevideo, que a torcida passa a envolver-se mais. A cada fase que o São Paulo avançava, os são-paulinos compareciam mais ao Morumbi. Após passar pelo mítico conjunto uruguaio (vitória de 0-1 no Uruguai e 2-0 em São Paulo), o São Paulo reencontrava o Criciúma. Apesar de não fazer parte da primeira divisão do Brasileiro, o clube catarinense, campeão da Copa do Brasil de 1991, fez uma bela participação naquela Libertadores. Terminou a primeira fase em primeiro no grupo do São Paulo e impôs muita dificuldade para o Tricolor. Na partida de ida, um sofrido 1-0 para o São Paulo com um gol, no final do jogo, daquele que viria a ser o principal talismã da equipa na Libertadores, Macedo. Na volta, um duro 1-1, com o Criciúma sainda na frente, pôs o Tricolar a um degrau da final. A semifinal, contra o Barcelona do Equador parecia fácil, já que na partida de ida, no Morumbi, o São Paulo ganhou, tranquilamente, por 3-0. Na volta, entretanto, em Guayaquil, o São Paulo levou um susto, perdendo por 2-0, o placar contra limite para que tivesse acesso a cada vez mais sonhada decisão.
O rival do São Paulo na final, o Newell’s, embora não fosse dos clubes argentinos mais conhecidos e galardoados, vivia um excelente momento – até hoje o melhor de sua história. Sagrara-se campeão argentino na temporada 1990-1991 e era o líder do Clausura de 1992, do qual seria o campeão (o torneio argentino passara a partir da temporada 1991-1992 a ter dois campeonatos por temporada, o Apertura e o Clausura). Era dirigido pelo então jovem e promissor Marcelo Bielsa.

No Newell’s, Bielsa não tinha nenhum craque, mas tinha jogadores muito inteligentes, suficientemente capazes de executar com muita aplicação e disciplina suas determinações. A boa cultura tática daqueles jogadores do Newell’s verifica-se hoje, pois grande parte deles são técnicos. Uns com sucesso, como Gerardo Martino e Mauricio Pochettino.
Na primeira partida, na fria noite de 10 de junho de Rosário, naquele pré-inverno do hemisfério sul de 1992, o São Paulo esteve bem, criando várias chances, algunas até claras para marcar. Mas um penalty muito duvidoso, uma suposta mão na bola do zagueiro Ronaldo, permitiu ao conjunto argentino vencer por 1-0, com gol de Berizo.
Agora, uma semana depois, não haveria outra alternativa para o São Paulo que não a vitória naquela quarta-feira, 17 de junho, véspera de ferido de Corpus Christi, no Morumbi. Mais de cem mil são-paulinos lotaram o estádio. Eram os últimos anos do Morumbi de cem mil pessoas, quando a segurança dos espectadores não era tão prioritária como hoje e em que estes ficavam totalmente esprimidos quando o estádio recebia tal quantidade de público.
Apesar de ter que reverter um placar adverso, havia muita confiança e otimismo dos torcedores e da mídia. Recordo ter escutado numa estação de rádio poucas horas antes da partida: “o São Paulo prepara-se para ser campeão da Libertadores”. E era justamente a rádio o único meio, como para mim, de acompanhar a partida, tal como toda a Libertadores daquele ano. Os direitos de transmissão da competição para o Brasil haviam sido comprados pela extinta OM, que não chegava em muitos pontos do Brasil – somente em algumas capitais. Só ter o relato da rádio acrescentava ainda mais angústia.
Foi uma partida, na maior parte do tempo, jogada no campo de ataque do São Paulo, que encarnou o conceito de tudo ou nada que imperava naquela noite. O primeiro tempo mostrou um São Paulo intenso e agressivo, que por falta de sorte e alguma ansiedade dos seus jogadores não logrou balançar as redes do goleiro Scoponi, do Newell’s. Um penalty em Muller também ficou por marcar. A volúpia do São Paulo tinha um grande perigo. Havia pouca barreira para impedir o contrataque do Newell’s. E, de fato, estes lances deixavam o torcedor são-paulino com o coração na mão.
No segundo tempo, o São Paulo voltou bem pior. O Newell’s parecia ter conseguido neutralizar as ações do conjunto tricolor, que parecia sem ideias. E o pior, o Newell’s lograva levar ainda mais perigo no contrataque. Porém, o São Paulo contava com um amuleto, Macedo. O atacante, que veio do Rio Branco de Americana para o São Paulo em 1990, fora titular durante todo o glorioso ano de 1991. Mas em 1992 caiu de produção, fazendo com que Telê Santana o colocasse no banco de reservas, só entrando em momentos críticos.
Aos vinte minutos, no momento mais complicado do São Paulo na partida, quando o time demonstrava até um pouco de nervosismo pelo escasso êxito nas suas jogadas, Telê troca Muller, dos maiores atacantes da história são-paulina, mas que vivia má fase na época, por Macedo. E poucos segundos bastaram para Macedo tornar-se o protagonista do lance que mudou a partida. Sentindo a presença do zagueiro do Newell’s, Gamboa, Macedo cai na grande área, e o árbitro, o colombiano José Torres Cadena, marca penalty. Um penalty tão incerto quanto o de Rosário que deu o triunfo aos leprosos (apelido do clube argentino). Na cobrança, Raí não vacilou e fez o torcedor tricolor respirar aliviado. Agora, ao menos a decisão ia para os penalties. Após o gol, praticamente não houve mais nada de significativo no jogo e a decisão não escapou, mesmo, dos penalties.
Naquela época a mídia esportiva brasileira havia criado uma lenda, que o Brasil ou os times brasileiros não eram frios o suficiente para decidir uma partida nos penalties. Muito em razão, talvez, da desqualificação da seleção brasileira no Mundial de 1986 para a França nos penalties. Talvez algumas derrotas nos penalties de times brasileiros na própria Libertadores, como a do Internacional, na semifinal contra o Olimpia do Paraguai em 1989 e a derrota do Cruzeiro para o Boca Junior na final da Libertadores de 1977 tenham alimentado ainda mais este pensamento.
O fato é que o histórico em decisões nos penalties do São Paulo era excelente. Na verdade, era perfeito. Nas três finais que o São Paulo até então decidira nos penalties saira com o título – 1975, final contra a Portuguesa do Paulista e 1977 e 1986 nas finais do Brasileiro, contra Atlético-MG e Guarani, respectivamente.
Naqueles rápidos instantes, o São Paulo vivia os minutos mais importantes de sua história. A primeira cobrança do Newell’s fez o torcedor são-paulino vislumbrar o que viria pela frente. O cobrador oficial dos rosarinos Berizo, chuta na trave. Em seguida, Raí chutando no mesmo canto direito do tiro do penalty que deu a vitória ao São Paulo no tempo normal deixava o São Paulo em vantagem. Zamora convertia para o Newell’s. Mas Ivan voltava a pôr o São Paulo na frente. Lopez empatava para o Newell’s. Ronaldo, dos mais inseguros no campo, falha a seguir, mandando no meio do gol para a defesa de Scoponi. Porém, pouco durou a angústia dos são-paulinos. Mendoza manda para o alto, permitindo que o São Paulo voltasse à frente, o que ocorre na cobrança de Cafu. Gamboa, um dos melhores em campo, seria o responsável pela quinta cobrança do Newell’s. À sua frente estava Zetti, à sua frente estava o goleiro que ficará imortalizado na história do São Paulo. Com um salto à sua esquerda, Zetti espalma o chute colocado do argentino, dando o título ao São Paulo e fazendo explodir o Morumbi de alegria. Talvez, a maior felicidade que este estádio tenha vivido nos seus quase cinquenta e dois anos. Logo após a defesa de Zetti tem lugar a maior invasão de torcedores da história dum estádio brasileiro. Uma mar de gente enlouquecida, no bom sentido, que divide com os jogadores o prazer de festejar a tão cobiçada Libertadores.
Depois daquela conquista, muitas outras vieram para o São Paulo. As mais importantes as Libertadores de 1993 e 2005, as Taças Intercontinentais de 1992 e 1993 e o Mundial de 2005. De fato, o clube pode gabar-se de ser o que tem mais títulos internacionais no Brasil e até mesmo proclamar-se como o mais glorioso do futebol brasileiro. Porém, nenhum outro título será tão especial como foi esta Libertadores de 1992. Foi graças a esse excelsior 17 de junho que o São Paulo começou a deixar de ser apenas um gigante nacional, passando a ser um gigante continental, um gigante mundial.

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